PADRÃO ALEMÃO DE QUALIDADE E CRÍTICA| LITERATURA

A Menina Sem Qualidades
A Menina Sem Qualidades

A literatura alemã deu dois tiros certeiros de crítica social nos últimos anos. Um deles mais denso, de escrita elaborada e repleto de conceitos e reflexões filosóficas, mas sem perder a boa fisgada ao leitor, é o romance de Juli Zeh A menina sem qualidades. As relações entre os alunos de uma escola, os professores e tudo o que envolve a dinâmica escolar é painel para um jogo que transcende o palco: vai ao mundo da vida, ao Lebenswelt e ao Dasein, conceitos que remetem a Husserl e Heidegger para mostrar que a experiência de vida, a historicidade, requer que o indivíduo se suje de mundo, como dizia um professor.

A jovem Ada traz em suas ações e seus pensamentos o existencialismo intercalado de niilismo capaz de isolá-la, por opção dela e alheia, na multidão dos corredores e salas de aula. Alev, nômade de escolas e países, vê na pequena uma peça para seu xadrez, talvez a rainha. O jogo que eles se propõem vai além do tabuleiro tradicional, como a fábula de Zeh brinca com o leitor desde o primeiro capítulo, quando o narrador já se mostra humilde em sua função, pela incapacidade de contar tudo, pois chegou mais tarde na história. Confuso? Complexo.

Pelas tramas que se apresentam em núcleos de ação como conceitos filosóficos, os capítulos se resolvem como episódios, como ensaios temáticos após os quais pode-se discutir o mundo atual e, sobretudo, as relações humanas. A sociedade se apresenta como o espaço de relações, expectativas e constantes frustrações, com a dureza de palavras e ações intercalada pela beleza de algumas descrições, como da esposa do professor, Branca de Neve nas feições, quase cadáver no gelo não fosse um passeio ao acaso de Ada.

Com humor perverso, os personagens se questionam quanto a seus lugares na sociedade, enquanto máscaras no jogo social e enquanto seres vivos na cadeia alimentar. O mesmo faz o leitor por diversos momentos da trama, que ganhou adaptação para série na MTV brasileira, com exercícios narrativos que buscam gerar o estranhamento causado pela fragmentação da versão literária.

Embora com tema aparentemente mais pesado, Ele está de volta, de Timur Vermes, é um deboche ao alemão dos dias de hoje. Numa aldeia global em que vivemos, o deboche se estende a todos. Hitler acorda em terreno baldio, em Berlim. Ele se lembra de ter mostrado a arma para a mulher e pronto, abriu os olhos em 2011. Não sabe o que ouve nesse intervalo, mas, estudioso, não demora a descobrir. Primeiro, tenta se localizar no tempo e no espaço, depois relaciona-se com as pessoas certas e diz o que precisa para mostrar que Hitler está de volta.

Sem negar sua identidade, o personagem transita pelo showbusiness alemão, ganha programa de TV, visita o partido que ajudou a fundar e faz enormes críticas ao povo e à forma pela qual o país é conduzido. Destrói em discursos as medidas políticas, estranha ações humanas (como as mulheres loucas que recolhem o que seus cães deixam nos gramados dos parques) e entende as consequências tristes da guerra perdida, como a necessidade de reciclar o lixo (se tivessem conquistado a Rússia teriam muita matéria prima).

Narrado pelo próprio, o livro mostra como funciona a cabeça desse Hitler no século XXI, o que não deve ter sido fácil para Vermes, que declarou ter passado meses pensando como Hitler para entender como ele lidaria com a nova sociedade e, principalmente, suas formas de comunicação. O humor, inteligente e repleto de referências, é o que há de melhor. Por vezes, algumas tiradas ficam restridas ao conhecedor da língua e da cultura alemãs, mas a maior parte requer do leitor conhecimento histórico e político da atualidade, além de suas formas de comunicação.

Hitler, amparado por Goebbels, foi exímio comunicador e isso não muda. Ele aprende a usar as novas mídias, mesmo que tropece ao usar alguns aparatos, como o celular. Retórico de marca maior, não precisa mentir para mostrar ao mundo o que pensa, e muitas vezes é entendido de maneira equivocada porque o interlocutor não o leva a sério. A brincadeira de Vermes é um alerta para que se pense o mundo de hoje, pois o que o personagem mostra é, principalmente, o quão alienado está o falante de hoje, muitas vezes inabilitado para ouvir.