ESPLENDOR NO SILÊNCIO | KINOS

Apichatpong Weerasethakul pode ser um nome pouco sedutor pra iniciar um texto, quase um trava-língua, mas é do tailandês a direção de Cemetary of splendour, poema cinematográfico que, pelas metáforas políticas, provavelmente não será exibido em seu país. A Tailândia vive uma ditadura e a liberdade é cerceada em diversas formas, como a proibição de reuniões com mais de quatro pessoas (amigos com filhos pra jantar? Esquece) ou a autorização para que qualquer pessoa denuncie outra, sem motivo aparente. O Brasil já viveu isso e, mesmo que algumas placas de passeatas mostrem o problema de memória, sabe-se não ser agradável.

076 - Cemetary of splendour 2

Em uma escola foi improvisado um hospital para acolher soldados acometidos por um mal súbito: sono. De repente eles dormem, assim mesmo, no meio de uma frase, do nada. É como se um interruptor fosse desligado e eles dormem não se pode estimar por quanto tempo. Uma mulher, casada com um soldado aposentado americano, toma para si a missão de acordar um dos soldados tailandeses que dorme na escola e dedica todo o tempo que tem para cuidar dele. E ele acorda. E dorme. E acorda de novo. Nesse ciclo, ela conversa com ele sobre o mundo e a vida, conversas habituais de dois desconhecidos, por vezes levando a perguntas capazes de gerar longas pausas para refletir, em outras, bem, interrompidas.

Uma outra moça, por vezes representação de uma divindade, conta que no solo em que foi construída a escola esconde-se um antigo cemitério de reis. Ao entrar no sonho dos soldados, a jovem percebe que os antigos reis usam a energia dos que dormem sobre eles. Eis uma das mais instigantes metáforas da história: governantes que usam a energia de um povo dormente para se manter ativo, a recorrência dos governos autoritários.

Corajoso, Weerasethakul conta essa história e, perguntado sobre os problemas que isso pode causar, responde a Cyril Béghin e Jean-Philippe Tésse, em entrevista publicada na edição 714 da revista Cahiers du Cinéma:

‘‘Quando Itt [soldado que acorda] diz que não vê seu futuro no exército, que ele prefere lavar carros, isso pode me causar incômodo. É claramente absurdo, mas os militares não consideram o cinema como propaganda. Muita gente foi convocada para o exército pelo que chamam de ‘ajustamento de atitude’. Eles te mandam assinar um papel no qual você promete não ter nenhuma atividade política, não participar de grupos, não escrever contra o regime, e se você não assinar eles te prendem, te processam e congelam sua conta bancária. Eles acreditam no medo. É a cada dia mais absurdo. 1984 de George Orwell foi proibido. São detalhes que podem parecer ridículos para um ocidental, mas é uma verdadeira opressão. O que é ainda mais assustador é que muita gente aprova essas medidas e prefere o exército.”

Ser poético e político é possível, quando não necessário. O principal elemento narrativo de Cemetary of splendour é o silêncio. Ele se manifesta em longas pausas nos diálogos, em que personagens apenas se olham ou nem isso; aprece nas tomadas sem movimento (se não me falha a memória, a câmera se move duas vezes); ele também faz parte de sequências ruidosas, como no início, quando uma retroescavadeira cava e cava um terreno e nada mais acontece, pois não se sabe se ela busca ou esconde algo. A mais longa tomada se dá no hospital, com várias camas organizadas de noite, na quietude do sono dos soldados afetados, e o único movimento é a troca de luz, um tubo luminoso que emana diferentes cores conforme o ambiente do sono que toma os homens.

O ritmo faz lembrar outro poema cinematográfico, desses que, como Splendour, faz sair do cinema sem palavras e depois os dias trazem mais do filme do que as poucas horas foram capazes de dar. Poesia, filme sul-coreano de Chang-dong Lee, mostra a avó que cuida de um neto rebelde e descobre num curso de poesia a melhor forma de se expressar para o mundo. E como aprende a lidar com a poesia, aprende a lidar com o mundo. Os dois filmes têm ritmos próprios e o espectador ocidental pode não conseguir acompanhá-los, ou mesmo refletir sobre eles na saída ou nos dias seguintes. Talvez por estarem dormindo sem saber.