MUDANÇA DE HÁBITOS – O CINEMA EM CASA | KINOS

Enquanto escrevo este texto, a brisa suave entra pela varanda, ao longe a chuva vem carregada por pesadas nuvens, a lembrança das tempestades da semana assombra a possibilidade de sair quando a noite chegar. Ao lado da porta pela qual entra o vento, uma televisão divide-se entre conversar com o pacote de canais de cinema por assinatura ou a estante de filmes em frente. O dilema do aparelho sintetiza a grande força que move o novo público do cinema: comodismo.

MUDANÇA DE HÁBITOS - O CINEMA EM CASA | KINOS

Os recursos do cinema em casa nascem junto com a televisão. Logo que ela começa a transmitir os filmes, vem a possibilidade de vê-los fazendo a própria pipoca, conversando com os amigos ou dando amassos no próprio sofá. Para os canais de TV é também um trunfo: duas horas de programação pronta a cada filme, ou seja, economia de produção. Mais ainda quando surge a possibilidade de fragmentar o filme inserindo anúncios no meio: ganhar mais dinheiro quebrando o trabalho dos outros. Nem todos os canais tinham Godard, que só autorizou que seus filmes tivessem anúncios em intervalos comerciais se ele dirigisse as peças.

Mais que a programação normal da TV, quem laçou os fãs da sétima arte para a telinha foi o videocassete. Imagine poder rever, anos depois de tê-lo feito no cinema, aquele filme que marcou a infância, a juventude ou as últimas férias. Isso se torna possível, seja pela compra da fita original ou pela cópia de amigos ou da cópia de outra cópia que ninguém sabe de onde veio, mas está ali. Ver o filme da noite na TV ou sair com os amigos? Os dois, basta gravar e até ver com eles depois.

A qualidade aumenta com a chegada do DVD, que também pode ser gravado, mas isso fica de lado perto da possibilidade de, além de ver o filme, como nos outros meios, também acompanhar os bastidores. Os erros de gravação, as cenas excluídas ou a produção de determinada tomada se tornam adendos ao filme. Antes, para ver tudo isso, era fundamental encontrar o programa certo de cinema na TV e torcer para ele abordar certo filme. Os extras passam a vender tanto quando os filmes, e com eles as versões estendidas.

Os canais por assinatura, desde o formato por cabo ou satélite, com programação fixa, até as propostas on demand, das quais a Netflix se tornou um ícone, permitem ao espectador descartar o videocassete, hoje artigo de colecionador. A filmoteca está aberta, basta clicar e assistir. A lista se organiza por categorias ou sugere ao público, a partir do que ele já viu, outras obras com formato ou linguagem parecida. Ou ainda, mapeando as preferências dos usuários, mostra o que outras pessoas que viram o mesmo programa assistiram em seguida.

Isso não chegaria a esse patamar sem a internet. Nela o cidadão tem tudo de legal ou não para seguir em sua vida cinéfila. Dos fóruns de discussão aos sites enciclopédicos, das páginas oficiais às fanpages (dentro ou fora do Facebook, que incorporou o termo a um de seus formatos de exibição), dos trechos de filmes e trailers divulgados nos canais de vídeos aos filmes inteiros abertos ilegalmente para compartilhamento. O cinema caiu na rede e o maior esforço demandado do espectador é o de contratar um bom provedor.

Cinema em casa pode ter imagem boa, surround, pipoca, amigos e o filme que escolher. Cinema em casa não tem fila, ingresso esgotado, filme exclusivamente dublado quando você quer legenda, idiota chutando sua cadeira. Cinema em casa, no entanto, não tem aquele encanto de mais de um século que envolve a sétima arte. Encanto? Magia? Num mundo de valores líquidos quem se preocupa com isso?

Ironicamente, mais que os milhões gastos em publicidade (ou por consequência deles), o que exerce mais força na hora de levar o público ao cinema são dois discursos do dia-a-dia: o medo de ficar pra trás, ou seja, de não ter visto o filme quando os amigos já viram; o medo do spoiler. Em um mundo com tanta facilidade em casa, os filmes entram em saem de cartaz numa velocidade enorme. Em parte porque ficou mais fácil, em função das novas tecnologias, fazer filmes, mas também porque filme tempo demais na tela não tem mais público, que, passada a correria inicial, prefere ver em casa.

Interessante levar as pessoas para a sala escura porque elas têm medo. Os que não têm, podem ver o filme em casa meses depois; ou baixar e ver nas condições que aparecerem, não se importando com qualidade (ou legislação). Ou podem, como desde 1895, fazer um delicioso programa que é o ritual de ver uma projeção na sala escura. Não por medo, mas por prazer.