O HÁBITO DO CONTRATO | KINOS

mudanca1O início das narrativas é constituído por um contrato com o leitor. Leitor do livro, do filme, da novela, da piada na mesa do bar. A primeira frase, a primeira linha, a primeira cena são abre-alas pra todo o desfile de conflitos e expectativas que vem em seguida. O espectador sabe disso, como o leitor das grandes obras. Vi isso com Rubem Fonseca, que construiu um parágrafo inteiro (se não me engano no livro Bufo & Spallanzani) com primeiras frases de obras clássicas. O termo “contrato” me foi apresentado pelo José Eduardo Brum em nosso grupo de estudos de narrativas.

No final de semana, num momento retrô, me encontrei duas vezes com Whoopi Goldberg vestida de freira. Mudança de hábito, em suas duas versões, vistas na ordem inversa à produzida. Geralmente tem continuação o filme que ganha repercussão e alguém pensa na possibilidade de lucrar um pouco mais. Se a dançarina de cabaré disfarçada de freira consegue transformar um coro de velhas numa atração papal, por que não faria jovens que já sabem cantar mostrarem serviço num concurso estadual de corais?

Para se chegar a essa pergunta, tudo começa no contrato. Na primeira cena do primeiro filme, Delores van Cartier canta com duas parceiras pra quase nenhum público de um cassino em Las Vegas. Enquanto os créditos pululam na tela, o trio se desenvolve por um pout-pourri de canções dos anos 70, todas coreografadas e cujas transições entre uma e outra se dão com certa rapidez. Do palco pra a briga com o amante e dono do cassino, dali pro camarim onde ganha um casaco de pele, do camarim pra sala do amante, onde pensa em devolver o casaco, que pertence à mulher dele. Quando abre a porta, Delores testemunha o assassinato do motorista e foge.

Pra aguardar o julgamento, o detetive Souther a esconde em um convento, onde a divertida atriz, das mais premiadas do showbizz norte-americano, faz rir o espectador com apenas olhares e pausas. E o contrato? Diante de uma rígida madre superior, a primorosa Maggie Smith, a irmã Mary Clarence (nome de Delores após os “votos”) é punida com o que poderia haver de pior no convento: participar do coral. O grupo de freiras canta de modo tão assustador que mesmo o padre, na missa, não consegue conter as caretas.

Filmes de superação como esse são comuns, mas é justamente neste ponto que o contrato se valoriza. Mary Clarence assume a regência do coro e faz das letras de suas músicas de cabaré uma versão religiosa, mas sem mudar o ritmo. As mesmas músicas da primeira cena, na mesma ordem, vêm ao público durante as missas, cada vez mais cheias. O filme é famoso justamente por essas versões das músicas conhecidas, algumas até mais lembradas nas versões cristãs. Contrato proposto, contrato cumprido.

Quando Delores surge na primeira cena do segundo filme, está em um palco lotado e encerra seu show vestida de freira, mas sem dispensar luz e brilho no figurino. As irmãs vão procurá-la pra que ajude na escola que as freiras assumiram (graças ao trabalho com a comunidade inicidado por Mary Clarence no primeiro filme). Quando ela aceita a tarefa, está firmando um novo contrato? Não, apenas reforçando o do filme anterior, o que fica claro desde a primeira cena: a cantora é aquela que foi freira e salvou um coral.

Com um roteiro menos elaborado, mas nem por isso sem a graça de Goldberg no personagem, as situações não saem do lugar-comum, os conflitos são óbvios e o gran finale é tão previsível que o diretor sequer se deu ao trabalho de ampliar o suspense. Ainda assim, o filme conta com boas vozes, como a fugee Lauryn Hill, e um coro de jovens que não deixa barato para as freiras, embora elas tenham mais diversão e autenticidade que os moleques. Mais do que músicas e risos, uma promessa cumprida duas vezes.

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